quarta-feira, 19 de agosto de 2009


Memorial da Trajetória Acadêmica e das Experiências Sócio-profissionais
Por Consuelo Pereira de Sales

Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu...” Alberto Caeiro



Sabe-se o quanto é complexa a realidade da educação brasileira, a qual norteia os caminhos do profissional de educação que se insere e se move na frenética busca de qualificação docente. Mais complexo ainda é tentar mensurar e delinear tais caminhos... Hoje, como formadora de Língua Portuguesa do curso de formação continuada para professores - Gestão de Aprendizagem Escolar – GESTAR, ao volver os olhos ao passado, percebo a extensão e o valor das ações empreendidas, durante a minha trajetória, possibilitando mudanças significativas e substanciais na docência. Através desse olhar, o presente memorial objetiva-se em compartilhar um pouco desse processo de formação e a sua influência no meu fazer pedagógico, assim como externar minhas expectativas de atuação como formadora do GESTAR, a que se destina este presente trabalho.
O desafio é saber por onde começar sem deixar de lado aspectos relevantes no processo de formação, percebendo devidamente seus efeitos ao longo dos anos. Comecemos, então, pelo Magistério que foi o embrião gestado pelo desejo de ser uma profissional de educação.
Durante esse período, havia uma grande expectativa com relação ao Estágio Supervisionado. Tal expectativa surgia envolta a um turbilhão de medo, dúvidas e insegurança de enfrentar o desconhecido: a sala de aula. Mas o que vale ressaltar é o orgulho imenso que havia em usar uma farda que me conceituava com o título de estagiária/professora que me imbuia a continuar.
Surpreendentemente, eram os estagiários que mudavam o clima da sala de aula. Era notório o valor que o alunado dava a sua presença, além também das carências tão perceptíveis no que tange ao conhecimento e a afetividade. Via-se que se instauravam, na sala de aula, o desânimo e a rotina do professor regente versus ao entusiasmo e ao diferente promovido pelo estagiário. Este, ironicamente, desprovido de experiência e amadurecimento para tal empreitada. O que se vê, nesta declarativa, é um pequeno indício, entre tantos outros, que revela o quanto o profissional docente necessita manter-se atualizado e desenvolver práticas pedagógicas eficientes.
Antes mesmo da conclusão do Magistério (Ensino Médio), já assumia uma sala de aula na rede particular de ensino. Uma escola de pequeno porte com turmas de séries iniciais. Com a prática e os constantes desafios, em sala de aula, fui aprendendo a lidar com o outro sendo útil no trabalho com o alunado em sua aquisição da leitura e escrita. Todavia deparava-me com inúmeras dúvidas sobre o que era de fato bom e eficaz para o êxito almejado. Sentia-me verde... Outras escolas, outras experiências e o desejo de prestar vestibular guardado no peito.
Após a conclusão do Magistério, já envolvida com a sala de aula, percebia o distanciamento que havia entre a teoria e a prática. A realidade destoava do que me foi ensinado, ou melhor, o que me foi passado não se coadunava com a ambiência da sala de aula que eu enfrentava. Não me sentia preparada, mas entre perdas e ganhos fui me moldando às situações mais complexas do meu trabalho.
Uma experiência vivenciada com turmas de alfabetização, para jovens e adultos, abriu o meu olhar sobre o valor da educação e minha responsabilidade diante dessa profissão. Algo em mim começava a mudar... Surpreendentemente, alfabetizar jovens e adultos foi mais rico que os meus três anos de curso no Magistério. Em primeiro lugar, esta formação não ensina a alfabetizar. Teria que aprender na prática: a psicogênese da escrita, as hipóteses que são construídas na aquisição da mesma... Mas não estava sozinha nessa empreitada. Com a Alfabetização Solidária comecei a perceber que se aprende com o outro mesmo que este não tenha escolaridade, que a escola da vida traz lições importantes, como o amor, o respeito ao outro, o trabalho, a cultura... Até então não tinha a noção de que a escola é viva, e pulsa... Que não basta apenas saber lidar com alguns saberes, mas compreender e orientar o sujeito que apreende, reflete e reconstrói a se próprio e a sua realidade. Me surpreendia e me assustava ao enxergar que eu era referencial e modelo para pessoas mais velhas. O título de professora me pesava: eu estava apenas começando, me formando... Em cada encontro, em cada amizade conquistada, em cada desafio, em cada “sim” e em cada “não” que proferia estava inconscientemente me formando, me aperfeiçoando com o mundo, com as experiências de outros... É impensável a formação docente que não se estabeleça num processo contínuo. Quanto ainda tinha a descobrir, a aprender!...
O tempo passou e demorei três anos para prestar vestibular. Naquela época, passei por uma crise financeira junto a minha família. Assim, prestar cursinho era um luxo, como também ter dinheiro para a inscrição do vestibular. Lembro-me que esse foi o motivo da demora... Fui aprovada na segunda tentativa: Letras Vernáculas. Por que o curso? Gostava de escrever e a língua portuguesa sempre me atraiu.
Para relatar o que foi esse período, uso a expressão divisor de águas. Muitas descobertas, muitas leituras, e a surpreendente constatação de que tudo que aprendi, até então, era muito pouco. A universidade exigiu muito de mim: o que eu já sabia e o que eu já deveria saber. Tentei cumprir. Foi doloroso.
Apesar das dificuldades, sabia que fazia parte de uma minoria privilegiada, advinda da escola pública, participando de uma universidade também pública: aspiração de muitos (negros, brancos, amarelos, índios, ricos e pobres) - privilégio de poucos. Isso me envaidecia e me impulsionava a continuar.
Posso dizer que vivi minha universidade como um embrião que suga do ventre da mãe tudo o que é necessário para sua sobrevivência. Ainda era cedo para perceber que este alimento não bastaria... Participava, sempre que possível, dos movimentos estudantis, dos Encontros Estaduais e Nacionais. Era voluntária em projetos de pesquisa que despertavam a minha curiosidade.
Uma dessas pesquisas, a mais relevante, foi um estudo feito sobre documentos antigos de Feira de Santana, no qual nos debruçávamos em um estudo lingüístico e filológico. Tal experiência resultou em várias comunicações que apresentei, com meus parceiros, em algumas universidades de outros estados e publicação em anais, a exemplo na SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Nesse período, mais uma vez o trabalho com Jovens e Adultos ressurge em minha vida. Não mais com alfabetizadora e sim como formadora de alfabetizadores. Como voluntária, resolvi participar do Programa de Alfabetização Solidária já me sentindo um pouco mais amadurecida. Foi um período de muitas leituras: Emilia Ferreiro, Paulo Freire, Piaget, Vygotsky, Henri Wallon, e muitas viagens nas visitas às classes. Em poucos meses, remunerada, já fazia parte do grupo como Coordenadora Setorial em dois municípios. Meu trabalho consistia em selecionar, formar e coordenar alfabetizadores da região. Durante cinco anos, em consonância com minhas ações dentro e fora da Universidade, estive ligada a este trabalho e, até mesmo, após a conclusão da graduação.
Trabalhar com a formação de alfabetizadores foi uma experiência muito rica. As discussões com o grupo de coordenadores setoriais na Pró-reitoria de Extensão da UEFS, as viagens, as visitas às classes, os avanços dos alfabetizandos, os emocionantes relatos que enviávamos para Brasília, os Encontros Internacionais da ALFASOL em São Paulo, os cursos de capacitações que planejamos. Tudo isso contribuiu de forma substancial a minha formação. Eu estava me formando... Estava apenas começando...
A universidade foi “um trampolim na aventura do saber”. Abriu portas e janelas na busca de sentido para minha vida profissional. Foi cruel ao exigir de mim muito além do que eu podia oferecer, pois, por muitas vezes, sentia-me despida de informações substanciais para acomodar um novo saber. Mas havia algo que me fazia buscar e ir além. Assim, após quatro anos e meio fui habilitada em Letras Vernáculas. Eu só estava aprendendo.
O trabalho de formação de formadores muito me atraiu. Passei por muitas assessorias pedagógicas mantendo essa função. Sem planejar, estava cada vez mais envolvida com a formação continuada, mas sem me distanciar da sala de aula. Mais desafiador que a sala de aula era o trabalho com os professores durante os cursos e oficinas de Língua Portuguesa pela simples razão de estar trabalhando com meus pares. Concomitante a essas ações, ocorreram as aprovações nos concursos públicos para professor da Rede Estadual de Ensino e, tempos depois, na Rede Municipal.
Imbuída do desejo e da carência por mais conhecimento, constatei que minhas experiências, adquiridas ao longo dos anos, se revelavam pequenas diante dos desafios da sala de aula. Era preciso ir além: Especialização em Língua Portuguesa: Texto. Mais uma vez a sensação de que nada sabia, ou melhor, de que pouco sabia...
O curso de especialização foi um momento de novas descobertas. Foi um tanto assustador perceber que, o que acreditávamos como o certo ontem, hoje, já não é mais. Nada é definitivo, tudo é volátil, assim como o homem, assim como a vida, assim como o nosso próprio objeto de estudo: a língua. Eis que tudo se fez e se faz novo e o nosso desafio é tentar correr atrás, buscar, ressignificar, inovar, conceber, reter entre os dedos a água que sempre nos escapa e que mata a nossa sede – a sede do conhecer.
Trabalhar com professores era sempre um desafio. O que eu teria de novo para falar com quem vivenciava das mesmas inquietudes, queixumes, desejos e sonhos que eu mesma sentia? Como discutir conteúdos que eles, aparentemente, dominavam? Seria pretensioso imaginar que eu poderia ser útil na função de formadora?...
Nesse ensejo, fui desafiada a participar do curso de formação continuada em serviço - GESTAR. O desafio agora era deixar a sala de aula, (minha zona de conforto) e me enveredar pelos labirintos que habitam na formação de professores. Nessa ambiência, tudo se fez novo: uma nova postura, uma nova linguagem, uma nova clientela que exigia muito mais de mim. Deparo-me agora com meus iguais, meus parceiros, meus pares. Novas inquietações... Novamente os questionamentos internos: o que teria eu a revelar como um renovo que ressignificasse sua práxis?...
Hoje, após cinco anos no GESTAR percebo a solidez e a credibilidade desse curso de formação a cada etapa exitosa. Percebo que os desafios que encaro no trabalho, em cada turma de docentes e em cada turma de discentes, me fazem ser hoje melhor que ontem. Este é o meu maior desafio que me acompanhará ao longo de minha vida.
Eis-me aqui no alto mar das novas experiências e descobertas. Eis-me aqui em meio ao meu processo de formação que me faz avançar sempre. Novas leituras, novos teóricos, reflexões, discussões, encontros, oficinas, pesquisas... Constato que preciso me despir de algumas coisas que já não mais se encaixam nesse novo contexto educacional e me vestir de novos conhecimentos... Sempre! Essa ação reflexiva é dolorosa, pois causa desequilíbrios até a sua compreensão e acomodação. E, dessa forma, me lanço a esse mar, certa de que cada professor e cada aluno é um ser singular nessa imensidão. Tendo eu que reconhecê-los e atender, à medida do possível, suas expectativas e aprender, aprender sempre com cada um deles. Eu continuo me formando... Recorro, novamente, a Caeiro: procuro desembrulhar-me e seu eu. A formação continua. Estou aprendendo.


Feira de Santana, 06 de abril de 2009.